ESTUDO ENCONTRA VARIANTES INÉDITAS LIGADAS A DOENÇAS QUE AFETAM RINS, AUDIÇÃO E VISÃO NO RN
No Rio Grande do Norte, um mistério microscópico mobiliza cientistas: alterações genéticas que desencadeiam uma doença sorrateira, capaz de comprometer rins, audição e visão sem dar sinais evidentes. Em estudo publicado na revista BMC Genomics, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, exploraram o código genético de famílias afetadas e identificaram duas mutações inéditas associadas à síndrome de Alport – uma condição hereditária que avança de forma silenciosa.
Descrita em 1927 pelo médico Arthur Cecil Alport, a doença afeta uma estrutura essencial dos rins chamada membrana basal glomerular, que funciona como uma peneira ultrafina para filtrar impurezas do sangue. Se essa estrutura é danificada, a filtragem falha, podendo levar à falência renal. Ela é composta por colágeno tipo IV, uma proteína produzida a partir das instruções contidas nos genes COL4A3, COL4A4 e COL4A5.
Quando esses genes apresentam erros – como se fossem palavras trocadas em um manual técnico –, a fabricação do colágeno é prejudicada. O estudo, realizado no Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN), descobriu duas falhas inéditas: uma mutação no COL4A3, que interrompe a leitura do gene precocemente, o que corresponde a um ponto final no meio da frase; e outra no COL4A4, que embaralha o DNA e gera uma versão incompleta da proteína.
As mutações foram identificadas em famílias dos municípios de São Miguel, no Alto Oeste, e Santo Antônio do Salto da Onça, no Agreste, como parte de um estudo iniciado pelo professor e oftalmologista Carlos Alexandre Garcia e pela então residente — hoje também oftalmologista — Raquel Araujo Costa Uchoa. Ambos os municípios investigados possuem um histórico de casamentos entre parentes próximos, uma prática comum em comunidades menores que, no passado, permaneceram mais isoladas.
No trabalho recém-publicado – desdobramento da tese de doutorado de Washington Candeia de Araújo, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Bioquímica e Biologia Molecular (PPGBqBM), sob orientação da professora Selma Jerônimo, diretora do IMT/UFRN –, o grupo investigou essas alterações genéticas por meio do sequenciamento completo do exoma, uma técnica que permite mapear detalhadamente todas as instruções envolvidas na produção de proteínas no corpo humano.
Foram analisadas amostras de DNA de pais, irmãos e pacientes com síndrome de Alport. Nos casos mais graves, as mutações apareceram em dose dupla, herdadas tanto do pai quanto da mãe — fenômeno mais frequente em famílias onde há parentesco próximo entre os genitores, o que aumenta a probabilidade de transmissão de genes defeituosos. A pesquisa também utilizou um método chamado runs of homozygosity (ROH), que rastreia trechos do DNA duplicados nos dois cromossomos herdados. No entanto, observou-se que nem todos os indivíduos desenvolvem a doença.
Aparentemente, apenas aqueles que herdaram as duas cópias defeituosas apresentam a forma completa da síndrome. Contudo, o estudo identificou que pessoas com uma única cópia do alelo também podem desenvolver a síndrome de Alport, embora, aparentemente, de forma mais tardia. Por isso, uma das preocupações da equipe envolvida no estudo é identificar os portadores, etapa essencial para mitigar os efeitos da mutação, tanto no aparelho renal quanto na visão e audição.
Além do avanço científico, o estudo traz importantes implicações sociais. O Brasil tem altas taxas de doenças renais, e um terço dos casos não tem causa definida. Em áreas onde o acesso à medicina especializada e à testagem genética é limitado, diagnósticos como o da síndrome de Alport costumam ser tardios, quando os pacientes já necessitam de hemodiálise ou transplante. A pesquisa contribui para que essas populações sejam incluídas nos mapas genéticos globais e abre caminhos para diagnósticos mais precoces e tratamentos preventivos.
A descoberta dessas mutações em famílias brasileiras também amplia a diversidade dos bancos de dados genéticos, ainda dominados por populações da Europa e América do Norte. Para a ciência, essa informação não significa apenas mapear uma nova variação genética, mas entender como a doença se manifesta em diferentes grupos populacionais. Os pesquisadores seguem acompanhando as famílias e planejam expandir a testagem genética para comunidades semelhantes. O objetivo é identificar precocemente pessoas com risco de desenvolver a síndrome de Alport, mesmo antes dos sintomas aparecerem, para que o tratamento possa começar cedo e prolongar a qualidade de vida.
Fonte: Agecom/UFRN