Foto: Reprodução/Acre Clube
“Seu cabelo é de Bombril, serve pra limpar panela”, “Quantas vezes você já lavou esse seu cabelo?” e sons imitando um macaco. Essas são as ofensas racistas que uma estudante negra de 14 anos de uma escola particular da Zona Norte de São Paulo sofreu de colegas durante um jogo de interclasses, na quinta-feira (10). A mãe da aluna denunciou o caso para o g1 e registrou boletim de ocorrência.
O episódio ocorreu no Acre Clube, localizado na região do Tucuruvi, onde estudantes do 9° ano do Ensino Fundamental do Colégio São Paulo participavam de um torneio de interclasses. Maria Clara* estava com uma amiga na arquibancada assistindo à partida de futsal, quando pelo menos seis alunos do 3° ano do Ensino Médio, entre 16 e 17 anos, começaram a xingá-la.
Segundo a educadora e vereadora suplente Adriana Vasconcellos, mãe de Maria Clara, inicialmente os estudantes mais velhos estavam gritando e xingando toda a sala do 9° ano envolvida da competição. Logo em seguida, a menina passou a ser o alvo específico do grupo.
“Ela é uma aluna negra e a outra menina também. São duas meninas negras que se reconhecem como negras. Elas foram ficando acuadas. Maria Clara usou uma palavra para se defender. Ela falou ‘vagabundas’, mas depois não disse mais nada. Depois, uma menina virou e disse pra ela: ‘quantas vezes você já lavou esse cabelo aí? O meu só hoje eu já lavei três vezes’. Outra se aproximou e falou: ‘seu cabelo é um cabelo para limpar, cabelo de Bombril, serve pra limpar panela’. Isso foi o auge, ela não suportou mais”, relatou Adriana.
“Ela me ligou por volta das 10h. Se ela fica muito nervosa, corre o risco de entrar em crise de ansiedade, ela tem isso. A sorte é que as amigas ficaram ali acolhendo. Ela me ligou desesperada, quase nem conseguindo falar“.
Enquanto esperava a mãe, Maria Clara acompanhada da amiga deixou a quadra para comprar um refrigerante e tentar se acalmar. No caminho, ela cruzou com um dos alunos que a atacou na arquibancada. O adolescente se aproximou e imitou sons de macaco, contou Adriana.
“Eu saí de casa e fui para o clube com o meu marido. E só aí eles [funcionários da escola] começaram a movimentação de acolhimento que também foi um acolhimento péssimo. A escola estava quase que dizendo para ela: ‘deixa lá’. Sabe aquela coisa de silenciar?”
Quando Adriana chegou ao clube, os estudantes do Ensino Médio ainda estavam na arquibancada, e o jogo acontecia normalmente. Revoltada, ela questionou as professoras e a inspetora o motivo pelo qual a competição não havia sido interrompida já que “um crime tinha acontecido“. Também exigiu que os pais dos agressores fossem chamados.
Os funcionários, então, começaram a dispersar os alunos do Ensino Médio e levaram o grupo responsável pelos ataques verbais para o colégio, que fica a menos de dois quilômetros do clube. Enquanto ligavam para os responsáveis dos adolescentes, Adriana também acionou a Polícia Militar. Quatro viaturas apareceram na escola para prestar apoio.
Três estudantes, acompanhados dos pais, foram encaminhados ao 13° Distrito Policial da Casa Verde. Segundo a educadora, eles não conseguiram localizar todos os envolvidos no episódio. O boletim de ocorrência, documento ao qual o g1 teve acesso, foi registrado como ato infracional análogo ao crime de injúria racional.
“Eu não desabei a chorar porque eu tinha que ficar firme até o final. Minha vontade era de chorar desde a hora que ela me ligou, mas eu tinha que ampará-la. Viemos para casa, ela tomou banho, conseguiu relaxar e dormiu. E aí quem não dormiu fui eu. Fiquei a noite inteira chorando“, relembra Adriana.
“É difícil pra gente porque a gente revive histórias, né? Eu sou uma mulher negra. Fui uma menina negra e parece que desencadeia algo muito ancestral, sabe? Todo sofrimento vem […] Eu tenho uma visão que parte do olhar africano ancestral. A gente se enxerga como uma grande família. Tem um ditado africano que diz ‘para se educar uma criança é preciso uma aldeia inteira’. Então, todas as crianças negras são filhas de todas as mulheres negras. Quando acontece com alguém que não faz parte da micro família já dói. Mas ela é a minha filha, e eu conheço cada respiração e pensamento dela“, desabafa com a voz embargada.
O advogado da família, José Luiz Oliveira Júnior, também explicou que ainda estão analisando quais medidas serão tomadas após o registro da denúncia na Polícia Civil. “A escola deveria ter se posicionado de forma veemente e enfática em relação a ser contra a questão de discriminação“, criticou.
Procurada na segunda-feira (14), a direção do Colégio São Paulo informou que os alunos entraram em discussão durante o jogo e, no mesmo momento, foram retirados pelos professores e pela inspetora. A partida também foi encerrada. No dia, a coordenação chamou os pais para conversar o ocorrido e os estudantes negaram as acusações racistas.
A instituição também afirmou que “repudia toda forma de discriminação e racismo” e que “se no final das investigações for realmente constatado o racismo, nós iremos expulsar os alunos responsabilizados”.
Como trabalhar o antirracismo nas escolas?
Episódios recentes de racismo — como da filha da professora Adriana Vasconcellos e da filha da atriz Samara Felippo na escola Vera Cruz — trazem à tona a discussão sobre como as escolas particulares têm trabalhado questões relacionadas a diversidade com os alunos.
Mestre em História da Educação, Léo Bento aponta que as escolas, especialmente que oferecem bolsas com recorte racial, devem implementar, no mínimo, quatro medidas:
– Letramento racial
– Criação de uma comissão antirracista
– Política de contratação afirmativa
– Análise de currículo
“As escolas precisam se preparar com letramento racial para toda a comunidade. É pensar nos pilares dessa educação antirracista, que é a gestão. Ela precisa ter entendimento de como a nossa sociedade se organiza racialmente e como que essa organização racial impacta numa perspectiva social“, afirma Léo.
“O racismo recreativo precisa ser combatido entre os estudantes e também com as famílias. O letramento racial também precisa ser feito com as famílias, para que as famílias possam ter dimensão de que a gente, no Brasil, por conta do mito da democracia racial e de relações amenas que foram sendo criadas e introduzidas na nossa mentalidade, acaba naturalizando determinadas situações como sociedade“.
*Nome foi alterado para preservar a identidade da vítima
Fonte: G1