EUA ARTICULAM ACESSO ESTRATÉGICO A FERNANDO DE NORONHA E NATAL SOB ALEGAÇÃO DE DIREITO HISTÓRICO E INVESTIMENTO BÉLICO
Diplomatas vinculados a setores republicanos dos Estados Unidos, diretamente associados ao núcleo político do presidente Donald Trump, vêm articulando informalmente com interlocutores brasileiros o uso irrestrito do Aeroporto de Fernando de Noronha (SBFN) e da Base Aérea de Natal (BANT), no Rio Grande do Norte. O argumento empregado remete ao conceito de “direito histórico de retorno operacional”, com base em investimentos realizados pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria.
O mesmo argumento foi recentemente utilizado em declarações sobre o Canal do Panamá, onde setores trumpistas passaram a defender publicamente que os EUA deveriam reivindicar o controle técnico-operacional da estrutura interoceânica, sob a alegação de que “foram os Estados Unidos que construíram, pagaram e defenderam a instalação durante o século XX”.
No caso brasileiro, trata-se de ativos geoestratégicos de alto valor: Fernando de Noronha como sensor-forward baseno Atlântico Sul equatorial, e Base Aérea de Natal como hub logístico de trânsito transcontinental, compatível com operações aéreas interteatrais e como base de prontidão para projeção sobre África Ocidental e litoral norte sul-americano.
Racional técnico-operacional por trás da pressão
Segundo analistas de defesa consultados pelo DefesaNet, tanto Fernando de Noronha quanto a Base Aérea de Natal oferecem vantagens operacionais tangíveis para a arquitetura C4ISR (Comando, Controle, Comunicações, Computadores, Inteligência, Vigilância e Reconhecimento) dos Estados Unidos, sobretudo no contexto de projeção hemisférica e contenção estratégica no Atlântico Sul.
No caso de Fernando de Noronha, sua localização equatorial posiciona o arquipélago como um ponto ideal para vigilância oceânica de longo alcance. A ilha funciona como plataforma natural para a instalação de sensores eletro-ópticos, radares de superfície marítima e equipamentos ELINT/SIGINT, voltados para o monitoramento de rotas navais e aéreas entre a América do Sul, a África Ocidental e o Atlântico médio. A proximidade com o corredor marítimo entre o Atlântico Sul e o Golfo da Guiné — hoje alvo de crescente atividade naval chinesa, russa e de embarcações de bandeira de conveniência — torna Noronha um vetor avançado de interdição e coleta de inteligência.
Além disso, o aeroporto do arquipélago possui capacidade de operar como ponto de apoio tático para aeronaves de vigilância marítima e UAVs de média altitude e longa duração, como os MQ-9 Reaper ou os SeaGuardian, permitindo cobertura persistente sobre áreas de interesse. A viabilidade técnica de integração com satélites de comunicações, bem como com redes de monitoramento oceânico baseadas em dados abertos e sinais AIS/SAR, amplia o valor estratégico da posição para operações de vigilância marítima e domínio situacional regional.
Já a Base Aérea de Natal, situada na região metropolitana de Natal (RN), possui relevância histórica consolidada. Conhecida durante a Segunda Guerra Mundial como o “Trampolim da Vitória”, a BANT foi utilizada pelas forças aliadas como ponto de trânsito logístico entre o continente americano e os teatros de operações da África e Europa. A base continua sendo uma instalação robusta, com pista de pouso capaz de receber aeronaves estratégicas como o C-17 Globemaster III, o KC-135 Stratotanker e o novo KC-46 Pegasus. Sua posição geográfica oferece acesso facilitado tanto a rotas transatlânticas quanto ao porto de Natal, o que a qualifica como um hub logístico de alto valor para operações conjuntas ou expedicionárias.
Do ponto de vista operacional, Natal apresenta condições ideais para reabastecimento em voo, evacuação médica, mobilização rápida de forças de reação e apoio a missões aerotransportadas em cenários de crise na costa ocidental africana, Caribe ou litoral norte da América do Sul. Sua proximidade com o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI) também permite sinergia para operações de inteligência para o monitoramento e rastreio de vetores brasileiros que estão sendo lançados.
FAB Super Tucano A-28 com pintura Comemorativa do 1º Grupo de Aviação de Caça que combateu na Itália durante a segunda Guerra Mundial Foto SO Johnson FAB
Ambas as infraestruturas, se combinadas sob um conceito de presença avançada, permitiriam aos Estados Unidos estabelecer um arco de contenção atlântico que complementariam sua atual malha de bases e pontos de apoio, como Ilha de Ascenção, a Ilha de São Tomé e instalações em Dakar. Este cinturão de vigilância e prontidão ampliaria substancialmente a capacidade de inteligência, vigilância e reconhecimento (ISR) dos EUA sobre o Atlântico Sul — uma região tradicionalmente fora do alcance direto da OTAN, mas onde se observa crescente atividade de potências extrarregionais, inclusive por meio de embarcações de pesquisa, pesqueiros industriais e plataformas marítimas de duplo uso, potencialmente vinculadas a operações de coleta de dados sensíveis.
Base legal e precedentes
A fundamentação jurídico-estratégica apresentada por representantes e analistas próximos ao governo Trump para justificar o pleito sobre Fernando de Noronha e Natal repousa sobre três eixos principais — todos baseados em interpretações ampliadas da história da cooperação militar hemisférica, em dispositivos legais do aparato de segurança dos EUA e em doutrinas geopolíticas mantidas de forma contínua desde a Segunda Guerra Mundial.
O primeiro vetor é de natureza histórico-operacional. Ambas as infraestruturas foram incorporadas ao esforço de guerra dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial: A Base Aérea de Natal operou entre 1942 e 1945 como base logística sob comando direto americano, sendo uma das maiores plataformas aéreas aliadas fora do território continental dos EUA. Já Fernando de Noronha foi adaptada para servir como ponto avançado de apoio à aviação naval, com reforço da infraestrutura local por parte da Marinha dos Estados Unidos. Essa participação incluiu aportes financeiros, fornecimento de equipamentos, obras de engenharia e construção de pistas, tudo amparado pela Lend-Lease Act (Lei de Empréstimo e Arrendamento de 1941), que permitia aos EUA financiar ou construir infraestruturas militares em países aliados, sob a cláusula implícita de utilidade comum.
O segundo eixo refere-se àquilo que think tanks de defesa nos EUA vêm definindo como “direito de retorno funcional”. Embora não reconhecida no direito internacional público, essa doutrina informal vem sendo ensaiada desde os anos 1990 e ganhou força com o ressurgimento de visões neomonroeístas no entorno da administração Trump. A tese sustenta que ativos militares financiados pelos EUA em países parceiros — especialmente em contextos de ameaça global ou competição estratégica — poderiam ser “reativados” com base em acordos tácitos ou no princípio de reciprocidade hemisférica. A retórica dessa doutrina ecoa elementos da Doutrina Monroe (1823) e da Western Hemisphere Defense Zone, proclamada por Franklin D. Roosevelt em 1941 e reafirmada informalmente durante a Guerra Fria como área de interesse vital para a segurança marítima norte-americana.
A Distância de 360 km de Fernando de Noronha até a Base Aérea de Natal é uma vantagem inquestionável frente aos 1.540km da Ilha de Ascenção até a costa da África
O terceiro elemento mobilizado pelos EUA envolve precedentes contratuais e legislativos. O extinto Acordo de Assistência Militar Brasil-EUA (1952), embora formalmente encerrado, segue sendo frequentemente citado em documentos técnicos e análises da RAND Corporation, CSIS e Heritage Foundation como referência à “tradição de interoperabilidade hemisférica”. Já o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) de 2019, firmado no governo Bolsonaro para viabilizar o uso da Base de Alcântara, é mencionado como precedente político e diplomático que abre margem para novas modalidades de acesso militar a instalações sensíveis sob controle brasileiro.
A esse quadro somam-se ainda marcos legislativos internos dos EUA que reforçam a tese de mobilização extraterritorial. O Mutual Defense Assistance Act de 1949 — base legal para o fornecimento de apoio militar a países fora da OTAN — e o ainda vigente Defense Production Act de 1950, que autoriza o Executivo norte-americano a mobilizar meios logísticos e industriais fora do território nacional em caso de emergência, são frequentemente evocados como dispositivos que sustentariam juridicamente operações avançadas. Complementarmente, os National Defense Authorization Acts (NDAA) dos últimos anos, sobretudo os aprovados entre 2017 e 2023, incorporaram cláusulas específicas de forward basing e cooperative security locations em zonas extrarregionais, como o Atlântico Sul, autorizando o Departamento de Defesa a empregar recursos para manter presença estratégica em regiões não formalmente cobertas pela OTAN.
A interpretação que emerge desse conjunto jurídico-doutrinário é a de que, diante da intensificação da competição sino-russa no Atlântico Sul e da necessidade de resiliência logística hemisférica, os EUA estariam legitimados — ainda que sem base legal explícita no Brasil — a pleitear o uso prioritário ou irrestrito de infraestruturas que, a seus olhos, fazem parte de uma malha estratégica herdada da lógica aliada da Segunda Guerra Mundial e reforçada pela arquitetura normativa da Guerra Fria.
Fonte: Defesanet