
Foto: Vinícius Mendes/DW
“Driblar os preços.” É assim que Ionara de Jesus, de 43 anos, tenta explicar sua única estratégia para alimentar a casa onde vive com três filhos, de 24 (uma moça acamada), 15 e 13 anos, no Parque Santo Antônio, na periferia de São Paulo. Enquanto a DW atravessa os corredores de um supermercado do bairro da Zona Sul com ela, porém, dá para ver que, com a atual inflação, os dribles estão sendo menos possíveis.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a inflação dos alimentos chegou a 7,69% no ano passado – um valor bem acima do 1,11% registrados em 2023. No acumulado do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 12 meses até fevereiro, houve uma pequena desaceleração em comparação com janeiro (7,49%), mas seguiu em alta 7,12%.
Realidades como a de Ionara têm preocupado o governo federal desde o fim de 2024, mas, depois que atingiram a popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se transformaram num verdadeiro entrave. Na última investida, há alguns dias, o Planalto retirou impostos de importação de alguns produtos básicos, como café, açúcar, azeite de oliva e sardinha.
“Ainda que uma inflação de alimentos caia, inevitavelmente, na conta de qualquer governo, fato é que a atual administração tem pouca responsabilidade no que está acontecendo”, explica o economista André Braz, do FGV-Ibre, no Rio de Janeiro.
Segundo Braz, a alta no preço dos alimentos se deve a fatores que vão de resquícios da pandemia de covid-19 a questões climáticas, que fizeram produtos como o café e o azeite dispararem, por exemplo. “A única coisa que podemos culpar esse governo é pela valorização do dólar causada pela incerteza fiscal”, continua.
Mudança no carrinho
Vinculada há cerca um ano ao POT (Programa Operação Trabalho), da prefeitura de São Paulo, desde que ficou viúva, Ionara de Jesus recebe R$ 1.500 mensalmente – um salário mínimo – fazendo algumas atividades esporádicas do projeto, como fiscalizar barracas de feiras de rua ou tecer tapetes.
Como a renda não é suficiente para alimentar a família o mês inteiro, ela confia em doações de cestas básicas para completar a despensa. No bairro, esse circuito é intermediado pelo Instituto Josefina Bakhita, ligado à ONG Ação da Cidadania, sediada no Rio de Janeiro.
É por isso que ali, diante das gôndolas, os “dribles” de Ionara têm que ser certeiros. Um deles é no feijão que, ao invés do tipo tradicional (R$ 7 por quilo), agora ela substitui pelo fradinho, quase pela metade do preço. “E eu vou adicionando água toda vez que requento a panela. Vai rendendo mais”. Depois, diante das farinhas de trigo, ela corre para pegar um pacote, explicando que, com ele, dá para “inventar” um tipo de “bolinho de chuva” que sempre ajuda a matar a fome.
Outro “drible” é sobre o café que, vendido por R$ 32 em uma embalagem de 500 gramas, é trocado há alguns meses por uma caixinha de chá – dessa vez, de capim-santo, mas podia ser de camomila, diz Ionara. Mudar o sabor é um jeito de burlar o desejo. “Estamos aprendendo a depender menos de cafeína”, sorri, encabulada. Alguns minutos depois, quando ela retorna involuntariamente ao corredor do produto, revela à DW outra estratégia recente. “A gente reveza lá em casa: cada dia um de nós toma café. Daí o pacote dura mais.”
Já alguns itens que faziam parte da compra doméstica – ultraprocessados, como bolachas e salgadinhos, mas também laticínios, como iogurtes e queijos – foram sumariamente tirados da lista. “Se não sobra dinheiro nem para comprar fruta na feira, como vou comprar essas coisas?”, questiona.
Carcaça de frango e suã de porco
A advogada Léa Vidigal, que acabou de lançar o livro Direito Econômico e Soberania Alimentar, lembra como, em meio à alta no preço dos alimentos, o risco de que famílias mais pobres tenham um acesso precário às proteínas se intensifica, “o que é grave, porque a falta delas tem uma série de prejuízos à formação das crianças, por exemplo”, observa. “A desigualdade se mede muito pela qualidade dos alimentos que as pessoas das diferentes classes comem.”
Na casa de Ionara, a presença diária de carne vermelha na mesa cessou há mais ou menos seis meses, quando o preço dos bovinos disparou além do que ela podia pagar. Segundo o IBGE, essa elevação foi de mais de 20% só em 2024. Hoje, entre dois e três dias da semana, ela e os filhos comem apenas arroz e feijão, sem nada mais.
“Eles não gostam de salsicha”, lamenta, contando que, com o ovo mais caro, ela perdeu um dos substitutos comuns das classes mais baixas diante da impossibilidade de comer carne.
Mas Ionara tem outras estratégias: uma é a carcaça de frango, que não se vende no supermercado, mas é facilmente encontrada em granjas do bairro. Custa cerca de R$ 30 e pesa em torno de 4 kg. “E daí a gente inventa, né? Faz uma sopa, refoga, cozinha uma canja, e ela vai durando umas duas semanas. Às vezes até mais.”
Outra é a espinha do porco, que se encontra nos açougues pelo nome de suã. É uma mistura de osso, carne e gordura suína. Ionara o encontra por R$ 10 o quilo. “A gente faz a festa com isso! “, sorri de novo. Com as doações dando conta do suprimento de carboidratos (macarrão, arroz, farinha), uma vez ou outra ela tem conseguido comprar ovos ou até mesmo peças bovinas, como acém (R$ 32 o quilo). “Mas o dinheiro ainda é muito pouco.”
De fato, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), uma cesta básica em São Paulo estava custando cerca de R$ 851 em janeiro deste ano – ou 56% de um salário mínimo. Segundo o Dieese, diante da inflação, o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas deveria ser de R$ 7.156,15.
Fonte: UOL/DW